Os dois pilares do programa de educação do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL) —a expansão do ensino a distância para crianças a partir de seis anos e o uso de vouchers nas universidades—, geram dúvidas em relação aos custos e desconfiança quanto a possíveis conflitos de interesse de membros da campanha.
As propostas de Bolsonaro buscam responder às dificuldades orçamentárias e às restrições aos investimentos em educação, que, submetidos ao teto de gastos, não podem crescer acima da inflação.
Em evento de campanha no dia 7 de agosto, Bolsonaro disse que a educação a distância ajudaria a "baratear o ensino no Brasil", além de "combater o marxismo". Ele também sugeriu o uso do modelo para ensino fundamental, de crianças acima de seis anos.
Segundo o programa registrado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a educação a distância "deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais, onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais".
A prática do ensino a distância, mais conhecido como EaD, já vem sendo usada no ensino superior, especialmente no setor privado, como forma de reduzir as mensalidades e atrair alunos.
Na década passada, a modalidade explodiu, passando de 1,8% do total de matrículas do ensino superior privado em 2005 para cerca de 30% em 2017.
O ensino a distância tem custos menores para a instituição porque o aluno realiza parte dos estudos em casa, desafogando despesas com infraestrutura da instituição e salário de professores.
No entanto, em locais onde a EaD é financiada pelo governo, como em alguns estados americanos, dados apontam que o modelo remoto não é necessariamente mais barato.
Estudo publicado pelo Centro Nacional de Política de Educação (NEPC), da Universidade do Colorado, mostra que, em 11 de 16 estados americanos, as escolas virtuais demandavam praticamente o mesmo volume de recursos das escolas físicas.
A redução de custo, quando ocorria, era entre 5% e 8%.
Para Allan Kenji, pesquisador da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), tirar a criança do contexto escolar para ensinar por métodos remotos vai deixar lacunas.
"A escola não é só informação. O professor acompanha o desenvolvimento das crianças e faz um conjunto de mediações como figura referencial para elas", afirma.
Kenji vê dificuldades na implementação do modelo porque o ensino a distância com crianças pressupõe ter um adulto em casa cuidando do menor, o que impactaria a força de trabalho no país.
O voucher, por sua vez, funciona como uma bolsa para famílias de baixa renda escolherem a escola de seus filhos —algo semelhante ao ProUni.
Hoje, o gasto por aluno no ensino superior gira em torno de R$ 9.700 ao ano. Assim, se todos os recursos fossem usados no novo sistema e repartidos, cada aluno receberia hoje cerca de R$ 800 para custear sua graduação. Para especialistas, a quantia seria insuficiente para arcar com diversos cursos. Como o objetivo é que os alunos de renda mais alta paguem mensalidade, o valor rateado entre os de menor renda poderia ser maior.
Se o voucher fosse ampliado para o ensino básico, o valor transferido ao estudante seria de R$ 530 com base no gasto anual por aluno, segundo cálculos de Naercio Menezes, professor do Insper. "A ideia básica de gerar mais concorrência no sistema escolar é interessante, mas o que ele poderia escolher com R$ 500?" afirma Menezes.
Julia Dietrich, especialista em educação da Uiversidade Federal do ABC, afirma que a política de voucher foi adotada por alguns países latino americanos, como o Chile, no início dos anos 1980. A expectativa era que a competição gerada entre as escolas levaria a uma melhora da qualidade.
"Não deu certo. Dentre as famílias mais pobres, as que tinham condição financeira um pouco mais favoráveis escolhiam as escolas melhores. O resto ficou com escolas de formação duvidosa, exatamente o que se critica no Fies", afirma Dietrich.
O Fies é o programa de financiamento estudantil do governo que atraiu estudantes para faculdades privadas com crédito barato a partir de 2010, mas foi enxugado em 2015 pelo corte no Orçamento, que e elevou os juros cobrados dos alunos e reduziu a carência, o que fez despencar o volume de matrículas de graduação no programa.
Segundo William Klein, presidente da consultoria especializada Hoper Educação, ainda não está claro de onde viriam os recursos para o voucher.
"No Fies é diferente, é um financiamento estudantil, ou seja, mesmo que tenha uma quebra, com um percentual de alunos inadimplentes, esse fundo tem um retorno que dá sustentabilidade", diz Klein.
Outro ponto que preocupa especialistas é que os modelos defendidos durante a campanha de Bolsonaro beneficiam setores ligados a possíveis futuros integrantes do governo.
Stavros Xanthopoylos, conselheiro de Bolsonaro na área de educação e cotado para comandar a pasta, passou parte de sua carreira na defesa do segmento de ensino a distância. Xanthopoylos já foi vice-presidente e hoje diretor da Abed (Associação Brasileira de Educação a Distância), entidade que reúne empresas com atuação na área.
Entusiasta do ensino a distância, Paulo Guedes tem, ele próprio, apostado no setor, por meio de sua Bozano Investimentos, que atualmente conta com oito empresas de educação investidas no portfólio de private equity e venture capital (que aplicam em empresas que captam recursos para expandir e eventualmente chegar à Bolsa).
Entre as investidas da Bozano estão uma empresa chamada Wide, que oferece soluções de EaD para companhias de educação, e a QMágico, uma plataforma online que conecta estudantes a professores.
"Usar ensino a distância para crianças e alunos da zona rural, que mais precisam de acompanhamento, é rasgar dinheiro. Fora o conflito de interesses", diz José Marcelino, professor da USP em Ribeirão Preto.
Carlos Monteiro, presidente da CM Consultoria, especializada em educação, estima que a implementação do EaD no ensino básico seria rápida.
"Em termos práticos, da mesmo forma que no ensino superior já existem aberturas [para a prática de EaD], eu penso que seria só descer essa legislação para o ensino fundamental e médio. Não é nada do outro mundo, não precisa passar pelo Congresso. Pode ser tratado na órbita do próprio Ministério da Educação", afirma.
Procurado, o MEC informa que atualmente, não há nenhuma diretriz do Conselho Nacional da Educação sobre educação a distância na educação básica.
"A atual gestão do MEC entende que há várias possibilidades de aproveitamento das tecnologias educacionais, mas nunca em substituição ao professor em sala de aula", diz o órgão em nota.