Até as 20 horas de segunda-feira (22), somava 8,6 milhões de visualizações um vídeo de 2016 em que Jair Bolsonaro, então deputado e agora presidente eleito, acusa o PT de promover a sexualização precoce de crianças nas escolas do país. No vídeo, postado em sua conta pessoal no Facebook e ainda no ar, Bolsonaro denuncia a entrega para alunos do que, segundo ele, seria um kit em que se ensina a ser homossexual e de um livro sobre sexo para crianças. Esses dois materiais, entretanto, jamais chegaram a escolas por vias oficiais. O livro apresentado por Bolsonaro no vídeo, e de novo em entrevista ao Jornal Nacional antes do primeiro turno, nunca esteve na lista de obras compradas pelo governo. Depois do desmentido, ele voltou a gravar afirmando que as escolas receberam a obra, sim, como um brinde das editoras. Esse novo vídeo já foi visto 3,5 milhões de vezes no Youtube, em canal extraoficial. Não é possível mensurar a quantidade de compartilhamentos de conteúdos no WhatsApp. A campanha envolvendo esse tema alavancou Bolsonaro, como o próprio reconheceu. “O ‘kit gay’ foi uma catapulta na minha carreira política”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo em abril de 2017. Mas essa não é uma retórica isolada ou original, circunscrita ao contexto brasileiro. Movimentos que se opõem a discussões sobre gênero nas escolas ganham força desde a década de 1990. Há iniciativas em ao menos 50 países, dos EUA à França, em consonância com agendas religiosas como a oposição ao aborto, ao casamento homossexual e a um suposto risco de destruição da família.

Entre os detratores pelo mundo, reforça-se o discurso de que há um ataque orquestrado por militantes da esquerda marxista ao conceito tradicional de família. No México, deputados com apoio de grupos conservadores chegaram a propor em 2016 a queima de livros didáticos que abordavam a educação sexual. No mesmo ano, uma marcha tomou as ruas na Colômbia contra a pretensão do governo de incluir essa discussão na educação. Na Itália, o chamado Jogo do Respeito foi proibido após mobilização de conservadores e religiosos. O material, com desenhos, questionava estereótipos sociais e apresentava homens passando roupa ou carregando um carrinho de bebê, além de mulheres trocando lâmpadas de casa. Segundo estudiosos, a abordagem educacional sobre questões de gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescência, violência contra mulher, homofobia e transfobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. De acordo com pesquisadores, o próprio termo “ideologia do gênero” foi gestado entre os que atacam essas discussões.

A consolidação da expressão se dá em documentos religiosos. “Ideologia de Gênero” aparece pela primeira vez em um documento eclesiástico em 1998, em nota da Conferência Episcopal do Peru intitulada “A ideologia de gênero: seus perigos e alcances” (antes, autoras antifeministas como as americanas Christina Sommers e Dale O’Leary haviam feito críticas similares). Em 2000, novas menções surgem em registro da própria Cúria Romana, até que, em 2003, é publicado o mais extenso documento católico sobre o tema, o Lexicon. A preocupação está presente, por exemplo, na Carta de Aparecida, resultado da Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, realizada no Brasil em 2007 com presença do papa Bento 16. O texto diz que a “ideologia de gênero” colaboraria para o enfraquecimento da família e prejudicaria a dignidade do casamento. A adoção do discurso e de expressões tem sido combinada com acusações infundadas, segundo o pesquisador Rogério Junqueira, do Centro de Estudos Multidisciplinares e Avançados da UnB (Universidade de Brasília). Junqueira é autor de estudos sobre a cruzada contra as discussões de gênero, como “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária – ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural?". Esse artigo identifica a escalada religiosa em torno do tema.

Na publicação de Bolsonaro de 2016, consta que, para o PT, “brevemente a pedofilia deixará de ser crime”. Nunca houve iniciativas nesse sentido nos governos do PT. Imagens de materiais do Ministério da Saúde para o público LGBTI em campanhas contra a Aids, por exemplo, foram disseminadas nesta eleição como se fossem conteúdo escolar. O petista, que disputava o segundo turno, era ministro da Educação na época da polêmica sobre o material contra a homofobia, engavetado em 2011. Além de ter sido barrado, o kit era voltado a alunos de ensino médio (com 14 anos ou mais) e a professores. “Investe-se em pânico moral quando se começa a falar que as crianças estão sendo ameaçadas”, diz Junqueira. “Os acusadores colocam os acusados na defensiva a partir de um suposto comportamento inaceitável, como ensinar sexo para crianças.” No Brasil, a polêmica sobre o kit foi o ruidoso início desse fenômeno, ainda em 2011. Mais tarde, em 2014, no governo Dilma Rousseff (PT), uma meta que buscava superar desigualdades educacionais “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” foi suprimida da versão final do PNE (Plano Nacional de Educação). Nos anos seguintes qualquer menção a gênero seria retirada de planos municipais e estaduais de educação. As supressões foram lembradas no texto de um abaixo-assinado feito em 2017 contra a presença no Brasil da filósofa americana Judith Butler, referência nos estudos de gênero.

A petição teve 300 mil assinaturas e a palestra, em São Paulo, foi acompanhada de manifestantes com cartazes clamando por “mais família”. Uma foto de Butler era acompanhada da frase “pedofilia não”. Foi também em 2014 que os filhos políticos do capitão reformado apresentaram os primeiros projetos de lei para criar o projeto Escola Sem Partido no Rio de Janeiro. Flávio Bolsonaro fez a proposta na Assembleia Legislativa, e Carlos Bolsonaro, na Câmara. Esses textos se posicionam contra a doutrinação partidária por parte dos professores, mas também preveem veto a conteúdos “que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais”. A iniciativa da família Bolsonaro impulsionou o Escola Sem Partido, movimento criado em 2004 para combater uma suposta doutrinação de esquerda dos professores nas aulas, e que também atingiria livros didáticos. No site do movimento, há minutas de modelos de projetos de lei a serem replicados pelo Brasil. Até abril, há o registro de pelo menos 91 apresentados em Câmaras Municipais e Assembleias com o mesmo teor, segundo reportagem da revista Gênero e Número. Outro projeto avança no Congresso Nacional, capitaneado pela bancada evangélica.

De acordo com o professor Fernando Penna, da UFF (Universidade Federal Fluminense), os defensores do projeto perceberam que poderiam ganhar atenção embarcando no combate à “Ideologia do gênero”. Uma proibição específica à palavra “gênero” aparece pela primeira vez em texto apresentado em 2015 no Senado. “Muita gente acha que o Escola sem Partido pautou o tema, mas é o contrário. Ele cresce quando acha esse filão”, diz Penna. “A questão tem sido usada como ferramenta política de manipulação do pânico moral”. Cunhado em 1972 pelo sociólogo Stanley Cohen (1942-2013), o pânico moral, também citado por Rogério Junqueira, é um conceito que define uma reação baseada na percepção falsa de que o comportamento de um determinado grupo, em geral minorias, é perigoso e representa uma ameaça para a sociedade. O vice-presidente do Escola Sem Partido, Bráulio Matos, concorda que a absorção mais efetiva do tema conferiu ao movimento um “destaque extraordinário”. Para Matos, a “Ideologia do gênero” significaria uma erotização precoce, sem consentimento da família e promovida pelo estado.

“O fundo da discussão está ligada a movimentos que querem, assim como no âmbito político, usar a sala de aula para agendas específicas”, diz ele, que é professor da UnB e fundou a iniciativa ao lado do advogado Miguel Nagib. Ambos são católicos e se conheceram pouco antes de 2004 em encontros no Instituto Liberal de Brasília. Matos defende que uma lista de deveres dos professores, previstas pelo movimento para, inclusive, serem afixadas nas salas de aula, não inova em questões constitucionais. “O problema crucial que o movimento levanta é a distinção entre liberdade de expressão, fora da sala de aula, e a liberdade de ensinar”, diz. Os projetos incluem a criação de canais de denúncias de professores. Ele ainda defende que o projeto não trata de conteúdos barrados. Mas um é sempre vetado: a questão de gênero. Em março de 2017, o ministro Luís Roberto Barroso (STF) suspendeu, em decisão liminar, uma lei que criava o programa em Alagoas (no estado o texto foi batizado como Escola Livre). Parecer do Ministério Público Federal de oito meses antes já classificara a iniciativa como inconstitucional por, entre outras coisas, impedir o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, negar a liberdade de cátedra e contrariar a laicidade do Estado (por permitir no espaço público da escola visões morais e religiosas particulares).

Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC, em SP, ressalta que os impactos dessas discussões já vão além de eventuais mudanças legislativas. “Há outra questão que é inocular uma autocensura, um medo e sensação de extrema vigilância dentro da escola”, diz. “Os casos de intimidação já estão acontecendo”. O secretário municipal de Educação de São Paulo, Alexandre Schneider, quase deixou o cargo em 2017 depois que se opôs a uma blitz feita em escolas por um vereador ligado ao MBL (Movimento Brasil Livre). O parlamentar denunciava supostas doutrinações, e o então prefeito João Doria (PSDB), eleito ao governo do SP, se manteve alinhado ao MBL. Outro lado de pressão é nas discussões curriculares em curso no país. Após pressão, o governo Michel Temer (MDB) retirou, em abril de 2017, ao menos dez menções a gênero da versão final da Base Nacional Comum Curricular (que prevê o que os alunos devem aprender na educação básica).

 

A ausência da previsão dessa discussão em planos de educação e na base curricular dificultam que redes de ensino possam criar programas de formação de professores. A necessidade desse preparo, segundo docentes, é tratar na sala de aula as questões que já são levadas à escola pelos alunos. O programa de governo de Jair Bolsonaro prevê o objetivo de lutar contra a sexualização precoce e defende que “um dos maiores males atuais [da educação] é a forte doutrinação”.

 

Fonte: Folha.com

Finalidade: Educacional